Património histórico de Avelar- As Noras da beira da estrada coimbrã

10-06-2018 19:17

    A irrigação do solo é uma necessidade vital das regiões secas da Terra. Apesar da ação moderadora do Mediterrâneo, a Península Ibérica apresenta grandes zonas dominadas pela aridez[1]. A metade atlântica da Península recebe muito mais chuvas anuais do que a metade mediterrânea. Mas a diferença entre estas duas metades manifesta-se mais nos diversos regimes que as caraterizam do que na média anual das precipitações. Enquanto na zona atlântica as chuvas são mais regulares e contínuas, as da região mediterrânea são bruscas e torrenciais e tanto mais torrenciais quanto menos frequentes[2].

    Resultou daqui a divisão da Península Ibérica em duas grandes zonas: Ibéria Seca e Ibéria Húmida. Apesar de Portugal estar compreendido na chamada Ibéria Húmida, nem por isso deixam de se impor os problemas de irrigação, motivadas pelas épocas de secura estival. Pode dizer-se que, no nosso país, julho e agosto são meses sem chuva ou de escassos chuviscos, incapazes de satisfazer as necessidades da agricultura[3].

 

    A irrigação portuguesa é principalmente de iniciativa particular, aproveita pequenas nascentes ou poços e algumas vezes rios para benefício da propriedade privada. Nas vilas e aldeias que mantiveram restos de velhas organizações comunitárias, perduraram curiosos sistemas de gestão e distribuição destes recursos de uso comum (RUC) de águas, que se podem encontrar em antigos costumes de regadio em propriedade coletiva.

    A origem da nora, uma roda provida de cubos para elevar água, está muito provavelmente na Pérsia, como o seu nome genérico “roda persa”, indica. A roda persa foi conhecida no Mediterrâneo na remota antiguidade. Vitrúvio (ano 30 a.C.) descreve claramente uma nora de uso corrente. A distribuição destes dispositivos de elevação de águas, além dos qanats e outros dispositivos hidráulicos, dependia do rendimento económico previsto em relação ao seu custo.

    A roda movida pela corrente era volumosa e cara e ficou confinada na zona compreendida entre os paralelos 20 e 30. Estava praticamente na sua totalidade associada ao regadio, o alto rendimento de cujas colheitas tornou as terras áridas em mais do que suficientes para compensar o investimento inicial.

    A roda movida por animais ou pelo homem (chamada sāqiya no Egito, sāniya no norte de África, e aceña ou sénia em Espanha, precisa de equipamento e, por esta razão, foi provavelmente inventada mais tarde que a roda de corrente, que não o necessita. Contudo, goza de muita mais ampla distribuição, tendo sido difundido não só ao largo da costa mediterrânica desde a Grécia até Espanha, mas também no norte das zonas regadas (como em França), onde é aplicada em usos não agrícolas. O económico shadūf ou cubo com contrapeso (em latim ciconia, como nas Etimologías de São Isidoro de Sevilha; em castelhano, cigϋeñal), teve uma ampla difusão, inclusivamente nas terras do norte (Escandinávia, Polónia, Canadá), onde não se encontram noras[4].

    A difusão da nora está tipicamente associada com os árabes como agentes difusores. No norte de África, a nora encontra-se nas zonas costeiras de Marrocos e com menos densidade de concentração ao largo da borda norte do Sahara, desde Tafilalet à Tripolitânia, mas não mais ao sul.

    A distribuição de noras na Península Ibérica ajusta-se à área de assentamento estável islâmica (da linha do Douro e o Ebro para sul; ainda que em Portugal haja alguma difusão ao norte do Douro. Em Espanha, as grandes noras são particularmente caraterísticas de Andaluzia a Múrcia; na Andaluzia foram usadas para tirar água diretamente dos grandes rios (o Guadalquivir e seus afluentes, por exemplo), enquanto que em Múrcia estavam geralmente situadas em grandes canais de rega. A famosa roda de La Ñora, movida pela corrente da Acequia de Aljufia, é o exemplo máximo do estilo murciano.

    A nora de tração animal, um mecanismo até há pouco muito comum em toda a Península e talvez o símbolo visível mais notável da marca islâmica na irrigação, foi introduzida pelos conquistadores muçulmanos no século VIII. O seu impacto no campo foi enorme. Como Carlo Baroja põe em relevo, «fue uma máquina que, debido a sua baratura, ha posibilitado más que ninguna outra el desarrollo del minifundio o explotación familiar [de la tierra]»[5]. Estas pequenas noras, ainda que se encontrem geralmente em áreas que se libertaram do domínio islâmico muito cedo (tais como a zona à volta de Girona), estão, todavia, mais intensamente concentradas nas áreas do Sul, mais fortemente islamizadas.

---------------------------------------------------------------------------------------------

[1] DIAS, Jorge e GALHANO, Fernando, Aparelhos de Elevar a Água de Rega, Publicações Dom Quixote, 2.ª edição, Lisboa, 1986, p. 18

[2] BRUNHES, Jean, L’Irrigation dans la Péninsule Ibérique et dans l’Afrique du Nord, Paris, 1902, p. 6

[3] RIBEIRO, Orlando, Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico, Coimbra, 1945, p. 61

[4] CARO BAROJA, Julio, “Sobre cigϋeñales y outros ingenios para elevar agua”, Revista de Guimarães, 65 (1955), 162. O primitivo instrumento era, sem dúvida, conhecido na Espanha pré-romana; veja-se Jorge Dias e Fernando Galhano, Aparelhos de elevar a água de rega, Lisboa, 1986, p. 210

[5] CARO BAROJA, Julio, “Nora de tiro”, p. 179; alguns dos argumentos foram antecipados por Bellver e Cacho (Influencia, p. 53) e Jaubert de Passá (Canales de Riego, cap. III, “Norias de la alta Cataluña”, I, 28-31

---------------------------------------------------------------------------------------------

Em Portugal, por exemplo, a nora tipicamente islâmica, com uma cadeia de cubos (em português alcatruzes), encontra-se especialmente em fortes concentrações no Sudoeste (Algarve) e na região central, ao norte de Lisboa 
As noras de ferro de eixo curto são hoje as que mais abundam no País e, com toda a certeza, em Avelar, representando formas de evolução das noras primitivas de madeira, com algumas das quais ainda conservam estreitas analogias. Chamamos rodas de alcatruzes a estes engenhos, cuja parte inferior está mergulhada na água. Em Soure (Casal de Rolas) e em S. João do Campo, Coimbra, chamam-lhes: engenhos, rodas de tirar água ou panos de tirar água. Na margem sul do Mondego, em frente a Montemor, são conhecidas por noras. Ao que parece, o termo mais generalizado é o de nora. Costumavam ser postas em movimento por um só animal, pois o peso a elevar é relativamente pequeno. Os alcatruzes têm uma capacidade média de 5 litros, mas quanto maior é a roda mais pequenos eles são para evitar que o peso se torne excessivo.
O Clube de Fotografia, no âmbito do Ano Europeu do Património Cultural, fez o registo fotográfico de noras, em Avelar, um património altamente ameaçado, já que hoje a rega se faz com motores de rega elétricos, mas que atesta a importância que teve no regadio local. (Link para Noras no Clube de Fotografia)
Temos registo arqueológico em Espanha de pelo menos uma nora na cidade de Valência, do século XI, na Praça do Mercado . No Repartimiento de Murcia, há várias referências à associação de noras e canais de rega, por exemplo, “a acena que tira agua de la acequia”.  Em 1271, depois do Conselho de Orihuela ter solicitado a ajuda do Rei a respeito a “las norias y sinias que les custan mucho de hacer y mantener”, Afonso X de Castela acordou ceder certos direitos “a todos aquellos que tienen su fincas y que riegan com anoras o com acenyas, o que las construyan de ahora en adelante”.  O Repartimiento de Valência também se refere a uma nora; uma doação aos Dominicanos em 1239 refere: “una rueda sólo en la acequia que va al molino de Bernat de Terol y que puedan elevar y puedan sacar un buen riego de agua de día y de noche, continuamente y sempre y [deban contribuir] algo al mantenimiento y limpieza de la acequia” .
Contudo, as noras não tiveram um grande papel na Huerta de Valência. Parece que se empregaram só extraordinariamente, como, por exemplo, nos planos dos oficiais da cidade para construir uma sénia para regar o jardim de la Lonja, em 1529. Além da documentação cristã do século XIII, a arqueologia medieval também registou a sua ampla difusão no Al-Andalus. Em Oliva, descobriu-se um antigo poço de nora que remonta ao século X. Este sítio singular proporcionou mais de cinco mil fragmentos de alcatruzes, uma indicação marcante do uso desta máquina ao longo dos séculos.
A Espanha islâmica e mais tarde a cristã converteu-se num novo centro para a difusão da nora. A primeira roda hidráulica em Fez (Marrocos), construída no século XIII, foi obra de um andaluz, Muhammad ibn al-Hajj, de Sevilha, possivelmente sobre o modelo da grande roda do rio Tejo, em Toledo .
Os portugueses e espanhóis introduziram a nora no Novo Mundo, onde foi usada comummente no México e menos amplamente na América do Sul .
A distribuição dos lugares com nomes de noras (La Noria, Las Norias, Noria) na Iberoamérica põe em relevo a difusão desta técnica nos tempos coloniais luso-espanhóis. Os dicionários geográficos da Comissão de Nomes Geográficos dos Estados Unidos recolhem cinco desses nomes no Chile, um em El Salvador, dois na República Dominicana, e cento e quarenta e três no México (comparados com dezasseis em Espanha e oito em Portugal). É duvidoso que todos estes nomes correspondam a lugares onde existiram noras. Para afirmá-lo necessitar-se-iam de estudos mais abrangentes, já que a eletrificação acabou com a maior parte destas noras. Em linguagem local de muitas partes da Iberoamérica o termo passou a ser sinónimo de “poço”. Nomes tais como a Noria del Burro (24’ 02’ norte, 103’ 28’ Oeste) não oferecem dúvida sobre a sua origem. Humboldt e outros viajantes comentaram também o seu frequente uso.
 
Professor António Figueira
  Em Portugal, por exemplo, a nora tipicamente islâmica, com uma cadeia de cubos (em português alcatruzes), encontra-se especialmente em fortes concentrações no Sudoeste (Algarve) e na região central, ao norte de Lisboa

As noras de ferro de eixo curto são hoje as que mais abundam no País e, com toda a certeza, em Avelar, representando formas de evolução das noras primitivas de madeira, com algumas das quais ainda conservam estreitas analogias. Chamamos rodas de alcatruzes a estes engenhos, cuja parte inferior está mergulhada na água. Em Soure (Casal de Rolas) e em S. João do Campo, Coimbra, chamam-lhes: engenhos, rodas de tirar água ou panos de tirar água. Na margem sul do Mondego, em frente a Montemor, são conhecidas por noras. Ao que parece, o termo mais generalizado é o de nora. Costumavam ser postas em movimento por um só animal, pois o peso a elevar é relativamente pequeno. Os alcatruzes têm uma capacidade média de 5 litros, mas quanto maior é a roda mais pequenos eles são para evitar que o peso se torne excessivo.

O Clube de Fotografia, no âmbito do Ano Europeu do Património Cultural, fez o registo fotográfico de noras, em Avelar, um património altamente ameaçado, já que hoje a rega se faz com motores de rega elétricos, mas que atesta a importância que teve no regadio local. Ver Fotografias (Clube de Fotografia)

Temos registo arqueológico em Espanha de pelo menos uma nora na cidade de Valência, do século XI, na Praça do Mercado[6]. No Repartimiento de Murcia, há várias referências à associação de noras e canais de rega, por exemplo, “a acena que tira agua de la acequia[7] Em 1271, depois do Conselho de Orihuela ter solicitado a ajuda do Rei a respeito a “las norias y sinias que les custan mucho de hacer y mantener”, Afonso X de Castela acordou ceder certos direitos “a todos aquellos que tienen su fincas y que riegan com anoras o com acenyas, o que las construyan de ahora en adelante”.[8] O Repartimiento de Valência também se refere a uma nora; uma doação aos Dominicanos em 1239 refere: “una rueda sólo en la acequia que va al molino de Bernat de Terol y que puedan elevar y puedan sacar un buen riego de agua de día y de noche, continuamente y sempre y [deban contribuir] algo al mantenimiento y limpieza de la acequia”[9].

Contudo, as noras não tiveram um grande papel na Huerta de Valência. Parece que se empregaram só extraordinariamente, como, por exemplo, nos planos dos oficiais da cidade para construir uma sénia para regar o jardim de la Lonja, em 1529. Além da documentação cristã do século XIII, a arqueologia medieval também registou a sua ampla difusão no Al-Andalus. Em Oliva, descobriu-se um antigo poço de nora que remonta ao século X. Este sítio singular proporcionou mais de cinco mil fragmentos de alcatruzes, uma indicação marcante do uso desta máquina ao longo dos séculos.

A Espanha islâmica e mais tarde a cristã converteu-se num novo centro para a difusão da nora. A primeira roda hidráulica em Fez (Marrocos), construída no século XIII, foi obra de um andaluz, Muhammad ibn al-Hajj, de Sevilha, possivelmente sobre o modelo da grande roda do rio Tejo, em Toledo[10].

Os portugueses e espanhóis introduziram a nora no Novo Mundo, onde foi usada comummente no México e menos amplamente na América do Sul[11].

A distribuição dos lugares com nomes de noras (La Noria, Las Norias, Noria) na Iberoamérica põe em relevo a difusão desta técnica nos tempos coloniais luso-espanhóis. Os dicionários geográficos da Comissão de Nomes Geográficos dos Estados Unidos recolhem cinco desses nomes no Chile, um em El Salvador, dois na República Dominicana, e cento e quarenta e três no México (comparados com dezasseis em Espanha e oito em Portugal). É duvidoso que todos estes nomes correspondam a lugares onde existiram noras. Para afirmá-lo necessitar-se-iam de estudos mais abrangentes, já que a eletrificação acabou com a maior parte destas noras. Em linguagem local de muitas partes da Iberoamérica o termo passou a ser sinónimo de “poço”. Nomes tais como a Noria del Burro (24’ 02’ norte, 103’ 28’ Oeste) não oferecem dúvida sobre a sua origem. Humboldt e outros viajantes comentaram também o seu frequente uso.

 

Professor António Figueira



[6] CARMONA, P.,Plana al.luvial de València, p. 155. Pode ter-se tratado de uma nora fluvial, se o leito do rio ali entrou, como a investigação geomorfológica sugeriu.

[7] TORRES FONTES, Juan, Repartimiento de Murcia, Madrid, 1960, p. 202

[8] MORELLÁ, Martínez, Cartas de los reys de Castilla a Orihuela, p. 50

[9]Repartimient de Valencia”, p. 326.

[10] COLIN, Georges S., “L’origine des norias de Fès”, Hesperis, 16, 1933, pp. 156-157

[11] Foram descritas poucas noras iberoamericanas, mas estas encontram-se em lugares tão distantes como a parte baixa do rio S. Francisco (Pernambuco, Brasil) e o Estado mexicano de Zacatecas; CARO BAROJA Julio, “Norias, azudas, aceñas”, p. 149, n.º 295; FOSTER, George M., Culture and Conquest, Chicago, Quadrangle, 1960, pp. 63-69.

 

Voltar